| Colecção Crescente 2024 | Sonhos | Curadoria: Mieke Oldenburg
A Colecção Crescente, é uma iniciativa da Associação Cultural Kulungwana inspirada no projecto sul africano denominado creative blocks, que, desde o seu início em 2011, trata diferentes temas anualmente, pela curadoria de Mieke Oldenburg. O título foi escolhido em torno da ideia de que o público amante da arte poderia dar início a uma Colecção de obras e fazê-la crescer ao longo dos anos a um preço acessível.
Artistas profissionais e finalistas das escolas de arte podem participar na exposição anual e recebem da Kulungwana placas estandardizadas de MDF com 18×18 cm para trabalhar.
Todos os anos é escolhido um tema que os artistas interpretam livremente nas suas obras. Uma variedade de técnicas têm sido utilizadas, nomeadamente: pintura, escultura, fotografia e técnica mista – todas elas apresentadas sobre uma superfície cujo tamanho, de pequena dimensão, é sempre visto como um desafio.
É um projecto que envolve um grande número de artistas plásticos moçambicanos e residentes em Moçambique – média de 100 por ano – com o objectivo de dinamizar o panorama das artes plásticas moçambicanas com esta actividade e de dar visibilidade à arte nacional.
_____________________________________________________________________
Imaginem que estão a fazer uma bela soneca e subitamente acordam sobressaltados, não por causa de um ruído exterior mas devido a um sonho bem vívido. Isto não é necessariamente incomum, mas podem ficar a pensar porque são os vossos sonhos tão realistas. E o que significa sonhar com outra pessoa? Qual o significado de sonhos onde se cai num buraco bem fundo? E o que pensar dos sonhos recorrentes? Os sonhos em si são um pouco menos misteriosos. Os sonhos são imagens mentais ou a actividade que ocorre enquanto dormimos. Podemos sonhar em qualquer fase do sono, mas os sonhos mais vívidos ocorrem tipicamente durante o sono REM em que ocorrem movimentos rápidos dos olhos. Nesse período do sono o cérebro está muito activo, os olhos movem-se rapidamente atrás das pálpebras e há uma perda temporária do tónus muscular. No sono REM temos menos equilíbrio autónomo, a frequência cardíaca aumenta e a respiração já não é regular e calma como durante o sono não-REM.
Quando sentimos mais stress ou ansiedade, tendemos a sonhar mais e o tipo de sonhos também muda. Os pesadelos – por exemplo, sobre ser perseguido ou estar numa situação assustadora – também são comuns quando estamos stressados. Essa é, alias, uma das teorias sobre porque sonhamos: os nossos sonhos podem ajudar-nos a processar e gerir as nossas emoções.
Os sonhos são algo valioso: impelem-nos em frente, dão-nos energia, entusiasmam-nos. Todos deveríamos ter um sonho. Qual é o vosso? Conseguirão realizá-lo durante a vossa vida? Tenho a certeza que é o que querem, que esperam conseguir realizar o vosso sonho. Mas consegui-lo-ão
realmente? A maioria das pessoas que conheço tem um sonho.
Muitos artistas foram influenciados por sonhos. Van Gogh afirmou: “Eu sonho os meus quadros e então pinto os meus sonhos”.
Os maiores pintores de sonhos são os Surrealistas: Salvador Dalí, René Magritte, Max Ernst, Joan Mirò, Paul Klee, Giorgio de Chirico. Nas suas pinturas Surrealistas de sonhos, expressam-nos como uma experiência a meio caminho entre o visível e o invisível. Para o pai do movimento Surrealista, Salvador Dalí, os sonhos, visões e símbolos forneceram imagens fantásticas ao seu trabalho. Os
relógios a derreter de Dalí são símbolos da falta de significado e da fluidez do tempo no mundo dos sonhos. Estes relógios “moles” que não funcionam estão entre as mais famosas obras de Dalí.
Malangatana, um destacado artista Moçambicano do século XX, realizou os seus sonhos através da arte, pintura, desenhos e murais. No catálogo da primeira exposição individual de Malangatana, em 1961, Pancho Guedes escreveu uma introdução que salientava a presença de monstros e figuras com pendor de certo modo surrealista no universo pictórico do artista: “A sua visão tem estranhos
paralelos com a tradição Europeia. Alguns quadros estão próximos dos Catalães primitivos, outros das aparições macabras dos visionários Holandeses e outros ainda são de um surrealismo involuntário, directo e mágico”.
Daí em diante Malangatana continuou a pintar mas dedicou-se igualmente ao desenho, regressando no seu trabalho aos seus pesadelos, delírios e sonhos e explorando mitos, estórias e objectos imaginários. Cena de Feitiço com Casal Guedes (1961) é uma das primeiras pinturas a apresentar o agora bem conhecido estilo de Malangatana: “uma das primeiras pinturas que fez
cheia de pessoas e animais”.
Mário Macilau tinha 14 anos e vivia nas ruas de Maputo, a capital de Moçambique, quando pôs as mãos numa máquina fotográfica. Aprendeu sozinho a usá-la – e 12 anos mais tarde tinha uma exposição individual em Lisboa, Portugal. Ele explica como escapou da pobreza: “Em garoto, sonhava tornar-me jornalista. Mas depois fui apanhado pelos problemas do dia-a-dia. Quando a
tua vida está cheia de preocupações é como se o futuro não existisse”. Macilau é agora um fotógrafo mundialmente famoso.
Em 28 de Agosto de 1963 um outro sonhador, Martin Luther King, fez o seu famoso discurso no Lincoln Memorial em Washington DC:
“Digo-vos hoje, meus amigos, que embora enfrentemos as dificuldades de hoje e de amanhã, eu ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho Americano. Hoje, eu tenho um sonho.
Tenho o sonho de que os meus quatro filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele mas sim pelo seu carácter.
Tenho o sonho de que um dia cada vale será elevado, cada colina e montanha serão abaixadas, os lugares ásperos serão aplanados e os caminhos tortuosos serão endireitados e a glória do Senhor será revelada e todos os seres a verão em conjunto”.
Sei que todos vocês têm sonhos. A vida é arte, pintem os vossos sonhos.
Mieke Oldenburg
Curadora
Garcia Márquez em Doze Contos Peregrinos conta a história de uma mulher cuja profissão é sonhar. A senhora, uma colombiana emigrada na Áustria na altura da segunda guerra, havia sido contratada por uma família austríaca para sonhar por eles e desta forma orientá-los nas melhores decisões a tomar no dia a dia.
Esta história dá-nos uma medida do que os sonhos representam hoje e ao longo dos tempos, e o extremo poder que exercem sobre os nossos actos, as nossas vidas.
Desde que o pensamento do homem possui a sabedoria para ligar o particular com o universal, a interpretação dos sonhos representou um meio para afirmar a relação do micro com o macrocosmo. Interpretar é atravessar no sentido inverso “a porta de marfim que separa a vigília do sono” (Homero) e perceber as coisas a partir do seu interior.
De relatos de sonhos premonitórios estão carregados os grandes livros, da Bíblia aos clássicos como a Odisseia. O poder atribuído aos sonhos condicionava as decisões de quantos a rodeavam. Jocasta tenta afastar Édipo para fugir ao incesto. A mãe de Jesus é visitada em sonhos por um anjo que lhe anuncia que dará à luz o Messias; Moisés receberá em sonhos instruções de como conduzir o povo de Israel.
Apesar da sua potente carga de fantasia e de irrealidade, o sonho era visto como um elo que ligava a realidade divina e humana. O sonho seria capaz de transmitir, mais do que qualquer outra experiência, a verdade.
Os egípcios tiveram o mérito de ter compreendido a importância da linguagem do sonho, os aspetos formais (relato) e não apenas o seu conteúdo e respetiva simbologia.
A maioria dos sonhos estava, ao contrário de nos dias de hoje, projetada para o futuro em vez do passado e da história do sujeito. Para além disso, o sonho não era apenas um presságio do futuro, mas seria capaz de condicionar os acontecimentos futuros.
Já na Grécia antiga, Heráclito afirmava que aos que estão despertos corresponde um mundo único e comum, mas alguém que durma retira-se para um mundo de que apenas ele é dono.
Freud, o pai da psicanálise moderna trouxe uma nova aceção: os sonhos eram guardiões do inconsciente e a expressão dos desejos recalcados. Jung dar-lhes-ia um cariz mais universal: quando se escava nos estratos do o sonho, em determinados níveis encontram-se imagens universais primordiais, idênticas em todas as civilizações, o que constituiria o inconsciente coletivo dos homens.
Hoje a ciência estuda o sonho como um “terceiro estado” que não corresponde nem ao sono nem à vigília, e que parte da necessidade do cérebro de apagar as memórias inúteis, para manter a individuação e a diversidade dentro da espécie humana.
Não sonhar leva à loucura. Por isso um dos métodos de tortura usados pelas polícias dos regimes totalitários foi e continua a ser a privação do sono.
Ter um sonho, ter uma aspiração, um desejo, é ter algo que move numa direção que, ainda que desconhecida, é equivalente a um destino. O sonho de Quixote, o sonho de Ulisses, o sonho de Spartacus, o sonho de Ghandi, o sonho de Mandela, o sonho de liberdade, o sonho de voar, o sonho de conhecer são os sonhos que movem o mundo, que provocam as transformações.
A arte moderna, como o sonho, faz uso ativo das explorações do inconsciente. Para além do uso das imagens oníricas, os dadaístas e os surrealistas procuraram reconstruir o próprio “trabalho do sonho” como procedimento para a construção de imagens artísticas.
Se, como Freud explica, o inconsciente de cada um está convencido da imortalidade, da sua e da dos outros, nos sonhos isto está patente, uma vez que convivemos com os nossos mortos como se eles se encontrassem vivos.
Este mundo que junta vivos e antepassados como se não houvesse separação está patente na arte africana. Malangatana é disso um expoente. Os seus quadros que parecem retirados de um sonho, retratam a “alma ciânica”, esse não-lugar onde os espíritos convivem com os vivos numa tela única onde o tempo e o espaço são circulares em permanente expansão.
É por tudo isto que a arte se equivale ao sonho como espaço de liberdade, de unicidade e de expansão da realidade.
Teresa Noronha, escritora